“Esse processo de transformação que os fundos tentam promover não é uma transformação de cima para baixo, é uma transformação feita a partir da escuta dos movimentos, fazendo com eles, trabalhando em parceria”.
A filantropia no Brasil tem dado passos importantes e, na busca por alcançar toda a sua potência, organizações que compõem a Rede Comuá contribuem como catalisadoras de iniciativas de fortalecimento da cultura de doação para a transformação e justiça socioambiental. Neste cenário, é necessário pensar em modelos que considerem o protagonismo das comunidades: esta é a tônica da filantropia comunitária, que posiciona o papel dos financiadores como parceiros e apoiadores de iniciativas e traz a comunidade para o centro das decisões. Formas decoloniais e ancestrais de filantropia apontam para um caminho de um desenvolvimento durável, que garante direitos e justiça social.
Criada em 2012, a Rede Comuá reúne fundos e fundações comunitárias, organizações doadoras (grantmakers) que mobilizam recursos de fontes diversificadas para apoiar grupos, coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil. Em entrevista para a Tabôa, que integra a Rede, Graciela Hopstein, coordenadora executiva da Comuá, fala sobre os desafios, potencialidades e perspectivas da filantropia no Brasil.
Tabôa: Como você avalia o atual cenário da filantropia no Brasil? Quais os principais avanços e desafios?
Graciela: Em linhas gerais, podemos dizer que, no Brasil, a gente tem uma cultura de doação que está em vias de desenvolvimento, mas aquém das possibilidades concretas que o país teria para realmente ter uma cultura mais sólida. Isso por duas questões: em primeiro lugar, porque ela começou a se instalar bastante recentemente a partir de iniciativas criadas pela sociedade civil, como o Dia de Doar, o Movimento por uma Cultura de Doação, o Confluentes, e outras iniciativas que começam a estar no campo sinalizando, justamente, a importância de ter uma política e, digamos, uma cultura de doação muito mais expandida no Brasil.
Mas também a gente conta com um marco legal que não é muito favorável para as doações, porque, na verdade, em linhas gerais, aqui no Brasil, existem poucas isenções fiscais e, na maioria das vezes, as doações, inclusive, precisam de impostos a serem pagos. Então, a gente tem uma cultura de doação muito fraca também porque por um lado não existem isenções fiscais que estimulem o fluxo de doações e também podemos dizer que em linhas gerais não há uma cultura de confiança no contexto da sociedade civil.
Tabôa: Nesse contexto, quais os principais potenciais da cultura de doação no cenário brasileiro?
Graciela: Olhando para o potencial da economia no Brasil e considerando a quantidade de famílias abastadas e de empresas - o Brasil ocupa o 12º lugar na economia do mundo - a gente tem um potencial muito grande para que a cultura de doação possa ser desenvolvida.
Temos muitos desafios vinculados ao marco legal e, ao mesmo tempo, à própria cultura, porque o brasileiro ainda não enxerga a importância que tem a doação na vida social, no dia a dia das pessoas. O que as pesquisas levantam, em linha gerais, é que os brasileiros e as brasileiras se movimentam ou doam maioritariamente perante as catástrofes, perante as situações de emergência, como aconteceu na pandemia, que foi bastante surpreendente o nível de doação, tanto de empresas como de pessoas individuais, famílias, etc. Mas o que a gente observa é que, nessas situações, doam-se mais bens do que recursos, do que dinheiro.
Então, essa é uma questão que a gente vem trabalhando há um tempo e os dados vêm mostrando que a cultura de doação está se fortalecendo, inclusive por todas essas iniciativas que mencionei, que estão criando pautas e movimentos muito interessantes. As organizações da sociedade civil, infelizmente, recebem mais doações de fora do que de dentro do Brasil, apesar de que a gente tem um investimento social privado bastante poderoso em termos de mobilização de recursos. Mas, inclusive, dentro dos institutos e fundações empresariais, a gente vê que a doação para a sociedade civil é, ainda, muito fraca, muito aquém das possibilidades porque a filantropia brasileira, na verdade, em linha gerais, prefere muito mais desembolsar para seus próprios programas do que doar para terceiros, doar para a sociedade civil, e muito menos doar para causas vinculadas à justiça social, direitos em geral, ou justiça socioambiental.
Embora, acredito que, nos últimos tempos, ou daqui para frente, a gente vai ter um compromisso muito maior das empresas, inclusive por causa do ESG, para alcançar um investimento mais forte na área socioambiental. Em linhas gerais é isso: temos uma cultura de doação que ainda é fraca, mas que está em vias de fortalecimento e expansão. Precisamos ainda superar alguns desafios que estão ligados ao marco legal e à cultura, pois o brasileiro ainda não tem consciência da importância de doar, da importância de colaborar, contribuir com a questão social a partir de doações.
Tabôa: E como as práticas de filantropia comunitária se inserem nesse contexto? O que as caracteriza e as diferencia de outras práticas filantrópicas?
Graciela: A gente vem falando bastante que não existe uma única forma de fazer filantropia, mas existem muitas filantropias no Brasil e no mundo. Com relação ao conceito da filantropia comunitária, ela tem sim algumas particularidades, algumas especificidades que se diferenciam de outras filantropias. Porque, na verdade, ela está muito ligada às comunidades, a poder atender as suas demandas necessidades e, com isso, na verdade, é um processo de diálogo, de escuta e de construir juntos. São as comunidades, na verdade, que decidem o destino dos recursos, onde os recursos devem ser investidos. Então, ela não se restringe apenas a organizações territoriais, mas é a uma forma de fazer filantropia, articulada com os movimentos, articulada com a sociedade civil, para poder apoiar com recursos financeiros movimentos, lideranças, organizações sociais, etc.
Tabôa: A Rede Comuá é composta por fundos temáticos e comunitários e fundações comunitárias. Qual o papel e a importância dessas organizações para a transformação social?
Graciela: Então, a importância que tem os fundos nesses processos é que eles estão colaborando, de alguma forma, com recursos financeiros para aquelas organizações que promovem as transformações nos campos da justiça socioambiental e desenvolvimento comunitário . Ou seja, é um grão de areia, um grãozinho mais no processo de transformação, porque, na verdade, quem faz essas transformações, quem está à frente dessas mudanças, são as organizações da sociedade civil. Por isso, o apoio, por isso o grantmaking que contribui com esse processo. Então, na verdade, o poder de decisão está muito mais com quem executa do que com quem doa.
Isso, na verdade, é muito importante e também se relaciona com a questão da filantropia decolonial, que tenta de alguma forma instalar um questionamento das relações de poder entre doador e donatário. Porque não é o doador quem decide as agendas, não é o doador quem decide como se avaliam os problemas, não é o doador quem decide para quem vai os recursos e o que se decide fazer com os recursos, mas são as comunidades, são os que recebem as doações que tomam as decisões com relação ao destino dos recursos. Então é uma mudança muito importante, muito significativa, é uma mudança de chave porque significa que esse processo de transformação com os quais os fundos contribuem não é uma transformação de cima para baixo, mas feita a partir da escuta dos movimentos, fazendo com eles, trabalhando em parceria.
Tabôa: Em recente artigo escrito por você e por Allyne Andrade Silva, publicado originalmente na revista digital Alliance e traduzido para o blogue da Rede Comuá, vocês refletem sobre a descolonização da filantropia no Brasil. Poderia nos contar um pouco sobre filantropia decolonial e sobre como se expressa a mentalidade colonial na história da filantropia brasileira?
Graciela: Então, a filantropia decolonial se expressa justamente em formas que muitas vezes são intangíveis. Porque realmente existem relações de poder e existe toda uma visão de mundo que está muito ligada à ideia de homem, masculino, branco, heteronormativo, do norte global, com uma visão obviamente eurocêntrica, branca.
Com a filantropia decolonial, a ideia também é poder pensar que existem outros tipos de filantropias ligadas, inclusive, à necessidade dos próprios territórios, às dinâmicas territoriais, à dinâmica de cada contexto político. Então, a ideia é criar nossos próprios modelos, criar nossas próprias formas de fazer filantropia, que são diferentes do norte global. De alguma forma é importante entender que a filantropia brasileira, latino-americana, é muito diferente da filantropia europeia. Inclusive, a gente tem como um ponto de partida importante o reconhecimento da existência de formas de filantropia que são ancestrais, porque as comunidades indígenas, as comunidades negras, quilombolas, já estão nessa cultura de doação há tempos, já vêm trabalhando com isso há séculos.
Na verdade, a gente tem que aproveitar a potência que tem essa ancestralidade, para pensar em modelos próprios, modelos de alguma forma “tropicalizados”, como a gente fala na Rede. Então, os caminhos para a descolonização são, na verdade, tentar, de alguma forma, repensar as relações de poder entre donatário e doador. Pensar em, justamente, entender o que acontece efetivamente no campo, porque as culturas de doações são muito diversas, e a gente tem que entender que elas existem muito antes dos institutos e fundações. E entender que a gente tem um modelo brasileiro, um modelo latino-americano de fazer filantropia, que, na verdade, é próprio e diferente do norte global.
Tabôa: Em setembro, a Rede Comuá fez 10 anos de existência. Qual o balanço que faz dessa primeira década de atuação da rede no ecossistema filantrópico brasileiro? E quais as perspectivas para o futuro?
Graciela: Nos últimos anos, a Rede vem se consolidando, não apenas porque cada vez temos mais membros, mas porque alcançamos um nível de maturidade no contexto interno e externo. Na verdade, a Rede é reconhecida pelos membros como um espaço importante para trocas, para aprendizagem, mas também porque a Rede hoje, a partir de todo seu trabalho, é reconhecida como um ator político, que tem uma capacidade importante de articulação com os ecossistemas filantrópicos, com diversos tipos de parceiros, que também conseguem, hoje, pautar agendas muito relevantes para a filantropia.
Eu acho que a Rede tem como característica própria pautar as agendas vinculadas à filantropia de justiça social e direitos humanos, que estão absolutamente ligadas a outros conceitos, absolutamente importantes, que são sociedade civil e democracia. Então, a Rede tem avançado muito na questão das suas dinâmicas internas de organização, de consolidação de sua governança, inclusive agora a Rede está se formalizando, mudamos o nome, também implica uma outra posição da Rede dentro do contexto brasileiro. Então, acho que o grande ganho nesses últimos anos é isso, hoje a Rede é considerada um ator conhecido, reconhecido capaz de pautar a agenda da filantropia no Brasil.
A Rede Comuá é uma das organizações apoiadoras do projeto Engaja Serra. Para saber mais sobre a Rede: Rede de Filantropia para a Justiça Social (redecomua.org.br)
Foto: cedida pela entrevistada.
Foto: cedida pela entrevistada.